A aspirante nos conta sobre o puxadíssimo teste físico da FIFA.
Daniela Coutinho é de Feira de Santana, tem 26 anos, trabalha como supervisora e ainda está na faculdade. Apita desde os 17 anos no interior e desde os 19 pela FBF. Seu pai era árbitro e ela o acompanhava nos jogos desde cedo.
Com uns 10 anos, enquanto suas amiguinhas brincavam de casinha, sonhando com coisas triviais à época – como se casar e ter um bom marido, o provedor do lar – ela disse que queria ser árbitra e correu atrás disso.
Como muitos sabem, essa não é uma profissão em tempo integral, antes uma colaboração de quando em quando. Pelos idos de 1995, devemos nos lembrar de que mulheres não eram assim tão bem-vindas sequer na torcida, imaginem supervisionando 22 atletas e aplicando as regras de um esporte tradicionalmente dominado, especialmente por essas bandas, por homens – à moda dos gregos, por exemplo, que na Antiguidade excluíam-nas.
Desnecessário dizer, contudo, que o cenário hoje, 16 anos depois, está completamente mudado – reformado, melhor colocando, uma vez que o machismo, tal qual o racismo, de bom não tem nada. Podemos até ignorar aquelas mulheres que distorcem o conceito de “liberdade feminina”, “igualdade entre os sexos”, “amor ao futebol” e “independência” e, numa relação vampiresca, misturam tudo e buscam arrancar pensões vitalícias de ex-maridos jogadores.
Segundo Daniela, a sua iniciação nessa esfera teve mais a ver com um chamado, um dom, do que com uma saudade do ambiente de trabalho do papai, ou quaisquer outras inferências psicológicas envolvendo a procura inconsciente pela conquista do amor paterno.
“O ambiente influencia também, porque eu sempre gostei de esportes, mas se fosse só por isso, eu poderia ter escolhido qualquer outro. No entanto, foi a arbitragem que me fixou mesmo, sabe? O Roberto Ferreira, que fazia parte até daqui da Federação, como Diretor Técnico, foi assistir meu primeiro jogo e virou pra mim e falou ‘Você tem um dom’, só que, jovem demais, eu não entendia o que era isso. Mas acredito que eu tenha ido por esse caminho por uma força maior, sim”.
Para Daniela, um árbitro deve ter, acima do conhecimento técnico e da paixão pelo futebol, uma fibra moral muito grande, para fazer com que as regras prevaleçam sobre os egos e temperamentos dos que estão jogando (e dos que os estão assistindo também, é claro).
“O árbitro tem que estar preparado psicologicamente. Estando bem tanto a parte psicológica, quanto a emocional, a técnica e a disciplinar se tornam apenas um reflexo disso. Porque estudar e treinar são a rotina, mas o que vale mais é estar bem de cabeça, para você colocar tudo isso em prática”.
A feirense, de figura petit com seus 58kg, singela, faceira, mas de olhar austero, tem demonstrado que a firmeza que sobressai de suas palavras é facilmente traduzida nos assopros e gestos (femininamente determinados) que a levaram aos acertos e às vistas do quadro nacional.
No dia 15 de setembro, mesmo lesionada, Daniela veio a concluir o teste físico da FIFA, após ter sido indicada pela CBF. “Eu estava até fazendo um jogo pela Federação, lesionei feio os dois pés, então eu fiz o teste ‘no escuro’, sabe? Sem saber se ia passar ou não. Não que eu estava sem treinar, mas pela lesão. Só que daí eu pensava ‘Essa é uma grande oportunidade, lugar de sentir dor é em casa, não é aqui não!’, então eu conclui e foi tudo bem”.
O teste é feito numa pista desportiva. Apesar de não saber se dá para ser escolhida na hora, o importante é completar o percurso inteiro. Tem uma bateria com os 6 tiros de 40 metros, depois tem os de 150 metros com intervalo para descanso de uns 30 segundos. Se perder um, tem o direito a refazer um só. Ela não precisou repetir nenhum.
O interesse pela função tem aumentado. Torcedores frequentemente nos enviam mensagens pelo Twitter, atrás de informações acerca de cursos oficiais – os quais, diga-se de passagem, por enquanto são inexistentes, ao menos até o ano que vem, quando deve ser reativado aquele que costumava ser realizado na UCSal, no campus de Pituaçu. Apesar de não ser a maioria, as mulheres estão lentamente afirmando-se nessa área.
“Antigamente, quando eu tinha lá para os meus 18 anos, só tinha Ana Paula como referência. Na escala passada, saíram três mulheres na Série A, na Série B foi mais uma, na Série C saiu mais... Acho que no quadro nacional, devemos ter uma média de 20 árbitras”.
Quando perguntada se existia mais cumplicidade entre as torcedoras e ela, pelo gênero em comum, ela disse que todos são iguais daquele lado da arquibancada. “Criança, homem, mulher, idoso. Quando são fanáticos, esqueça. O que eles vêm não é exatamente uma pessoa. Eles só vêm o ‘juiz ladrão’. E é até melhor pra gente, pra acabar com esse contrassenso de que ‘mulher é o sexo frágil’. Se estamos lá é pelo potencial, podemos aguentar pressão”.
Ao que parece, em todo esse tempo antes, durante e depois da partida, os árbitros de forma geral são como psicólogos: cercados de gente (momentaneamente) bipolar, lidando com todo tipo de expressões de êxtase e depressão, tudo condicionado a cada lance marcado por eles e seus auxiliares. E quando são do sexo feminino...
“Você geralmente ouve as críticas, do tipo ‘Pô, acabou com meu time, só podia ser mulher’, isso pra dizer o mínimo. Mas quando você ouve um elogio, é dos bons: ‘Pô, a mulher apita muito, véi! Ela tá apitando melhor que muito marmanjo!’. Então é sempre assim, ao extremo. Se o jogo for bom pra eles, eles vão te elogiar pra caramba principalmente pelo fato de você ser mulher. Se não, aí eles te colocam como a pior porcaria”.
No início de 2012, saberemos se essa nossa aposta baiana – a versão feirense da personagem de Hillary Swank em “Menina de Ouro” (trocando as modalidades desportivas, obviamente) –, continuará a inspirar outras jovens a se relacionarem com o futebol de forma mais séria e menos dependente de pensões de ex-atletas. Citando outra negra poderosa, a Beyoncé, “Who run the world? Girls!”.
FONTE: WWW.FBFWEB.ORG